sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Políticamente correto, censura e afins. Belíssimo texto de João camilo, de BH

Havia decidido, em princípio postar aqui apenas textos que eu mesmo escrevi. Imagino que quem segue ou lê um blog, quer saber o que o blogueiro tem a dizer, o que ele pensa, qual sua posição sobre assunto X ou Y. Mas, estou aprendendo fazendo. Como diz o meu amigo e parceiro Zé Bocca, "ensaio a gente faz ao vivo", e é ensaiando ao vivo que construo esse blog. E aqui inicio o que tratarei como exceção: Publicar um  texto já publicado em um outro site ou blog. Claro que haverá critérios para isso. O projeto de usar o blog pra publicar o que eu escrevo continua firme e forte. Os motivos que me levaram a querer publicar esses texto que segue, talvez se tornem os critérios para repetir a situação: Além de achar o texto maravilhoso e de maneira geral refletir o que penso, conheço a fonte, sei que o texto é fiel à maneira de pensar e de agir do autor, o incrível João Camilo, e acho que muita gente deveria conhecê-lo. Tomem como um presente e uma provocação. Ah! exijo que visitem o site onde foi originalmente publicado: http://www.aletria.com.br/ do Instituto Cultural Aletria, um "latifúndio" de inteligência, bom gosto e espíritos incríveis na deliciosa cidade de Belo Horizonte, no planeta Minas Gerais.
Marcos Boi

Em defesa da: Censura - Leitor errante

Dois fatos provocaram alguma discussão no mundo literário. Os liberais de plantão tremeram de emoção ao observarem a bandeira da censura tremeluzindo em dois mundos, o democrático Estados Unidos e o terrível Irã. Nos Estados Unidos o politicamente correto fez com que a palavra “nigger” fosse substituída por “slave” (escravo). No Irã, Paulo Coelho foi banido e o imortal brasileiro já pediu a interferência do governo para resolver tão importante coisa.

O problema de Twain é antigo. Mais antigo do que pensamos. O autor é campeão da censura e adorava rir disto. As aventuras de Huclekberry Finn foi banido logo após o lançamento. Nasceu com o estigma da polêmica. Mas conquistou espaço e no século seguinte, Hemingway e Faulkner afirmaram de maneira similar que era o romance fundador da literatura moderna americana. Na década passada, o livro voltou a esquentar as discussões. Crianças e pais reclamavam da adoção da obra por conta da linguagem, especialmente da palavra “nigger” (que significa negro). No decorrer dos séculos, a utilização da palavra como forma de insulto racial e imposição social, transformou-a em um anátema. E com isso o livro foi banido novamente. Em um ato de “boa vontade”, uma edição de Hucleberry Finn removendo a palavra e substituindo-a por escravo foi lançada. Desta forma, a obra estaria “saneada”para ser adotada nas escolas sem ofender a ninguém. É claro, a palavra “escravo” é muito mais amistosa. Eu pessoalmente espero chamar o Obama de Senhor Presidente Escravo.

A situação evoca a polêmica Monteiro Lobato, que ocorreu no Brasil. Twain é um sujeito menos complexo que Lobato. Doou dinheiro e apoiou o Norte durante a guerra civil, lutou por direitos humanos, e declaradamente incluiu na história a modificação do relacionamento entre Huck e Jim, um ex-escravo. No caso de Twain, não existe nem o conflito temporal, que transformou certas posições e expressões de autores (Melville, Kipling, Voltaire, Conrad) em controverso. Mark Twain sabia o que estava fazendo: alterou o desenvolvimento da obra para incluir a linguagem “vulgar”, mais realista, sem idealizá-la, para conseguir o efeito realista e crítico que desejava. Por isso o uso de “nigger” e em parte por isso os primeiros banimentos da obras.

A questão em ambos os casos não é o status de intocável de Twain e dos clássicos, rota que grande parte dos críticos tomou. A literatura não é feita de textos estáticos, herdou tal conceito da tradição oral. Quando os primeiros autores surgiram, não pensavam em termos autorais. Homero ou os primeiros e anônimos autores desenvolveram técnicas, personagens, conceitos e roteiros sem preocuparem-se com o mérito pessoal e a questão a originalidade. Assim, nem a Ilíada ou a Odisséia foram editadas por Homero. A organização dos textos em dois volumes, a escolha de quais versões ficariam registradas, foram realizadas séculos depois da questionável existência de Homero. Não é apenas Homero, um conto de fadas tradicional, foi modificado pelos seus autores mais famosos como Perrault e os irmãos Grimm, que produziram versões modificadas para o seu público.

Situação similar ocorreu com Shakespeare, suas peças foram editadas anos após sua morte e apenas durante os séculos seguintes, o texto considerado ideal pelos editores foi selecionado, pois havia várias versões de uma mesma obra, fruto da necessidade de Shakespeare em adaptar as apresentações para diferente públicos e palcos. Ou seja, é possível que “ser ou não ser”, não fosse algo que Shakespeare desejaria ser lembrado. Mas não é algo do passado, as versões infantis de obras, as versões condensadas, as recriações, as versões em prosas de poemas e as traduções – todas essas, de qualidade ou não – são válidas. Todos são mecanismos de transformação do texto literário, mecanismo este que perpetua e renova a literatura e toda a arte: quando outro toma posse do produto de arte e acrescenta algo, seja uma nova visão ou uma pincelada extra. O mundo moderno insiste na originalidade sem realmente ser original e na autoria, sem perceber que aos poucos, quem somos é abandonado, restando a visão da nossa obra, em um mundo turvado, onde somos apenas mais uma sombra. Até o momento em que entrega seu texto, existe um autor, depois, quando rodam as prensas, existe apenas o leitor. O autor que deseja que sua obra permaneça intocada e imutável não quer leitores.

A verdadeira questão em debate não é a obra de Twain ou Lobato. Mas sim, quem são essas pessoas que decidem o que deve ser lido em salas de aula? Qual o critério? Qual a função do ensino? O que esperar deste ensino. Pois se acreditam que os leitores são incapazes de lidar com uma questão de contexto tão simples (já que a palavra “nigger” é usada corriqueiramente nos Estados Unidos e os jovens estão cientes de que pode tratar-se de um insulto, dependendo de qual grupo a pronuncia.), há algo de errado na formação de tais leitores. E se acreditam que os professores são incapazes de lidarem com os conflitos dentro da classe, então há algo de errado com os professores. Finalmente, se não há suporte de outras disciplinas que constroem o valor ético e moral (não é uma palavra que faz uma pessoa racista, palavras perdem e ganham sentidos e o preconceito ganha novas palavras) e a história de um país, há algo de errado com a grade curricular. Alterar Twain não resolveria nenhum destes problemas. E se Twain for escolhido por ser um clássico, qual a necessidade de alterá-lo?

Quanto ao outro problema de censura, devo dizer que é uma questão ética. Paulo Coelho publicou alguns de seus livros primeiramente no Irã, pois o país não é signatário de acordos internacionais de direitos autorais e com isto, seus livros estariam protegidos pelas leis mais rígidas daquele país. Quando foi conveniente, utilizou daquele país para seus fins. Agora, que adota uma postura ditada pelo marketing, mais liberal, tem a ousadia de reclamar das condições não democráticas daquele país e pedir que o nosso governo paparique os seus milhões. Não percamos tempo com esse tipo de hipocrisia. A censura do Irã é neste caso uma forma de controle de qualidade.

Esse pesadelo confundido com a democracia criou a visão de que a censura impede a criação artística e a qualidade. Nada mais falso, a arte consegue ser elitista, sem problema algum. Ela não se prende aos conceitos éticos que demandam igualdade. Por exemplo, vi o Nelson Motta apresentar uma retrospectiva do Rock in Rio, afirmando que o festival trouxe a era dos mega-festivais para o Brasil, pois antes havia ditadura e sem liberdade não haveria rock and roll. O pensamento é medíocre. O rock and roll nasceu dentro de uma sociedade conservadora, da música negra segregada nos Estados Unidos, do conservadorismo americano chocado com os quadris incansáveis de Elvis, da contracultura do movimento Hippie, da repressão da era Tatcher que deu ao mundo o punk inglês e não da liberdade simples, não conquistada, frívola, MTV ,que o Rock in Rio trouxe para o Brasil e que produziu um rock and roll insípido e pretensioso. A arte se vira bem com censura, contra ou a favor, basta dizer que a Capela sistina foi realizada debaixo dos olhos do Papa. Michelangelo tinha como inimigo o Tempo, não um menos eficiente burocrata de paletó ou turbante.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

carta abortada

Nesse momento de mais uma transição profunda em minha vida, estou resgatando textos e poemas que escrevi há muito tempo, coisa de quinze anos ou mais, e que são conhecidos por muito pouca gente, sobretudo por quem os inspirou. Tem sido prazeroso me reconhecer neles, apesar dos arroubos exageradamente juvenis. Esse foi escrito como se fosse uma carta mesmo, mas que a pessoa que o inspirou veio conhecê-lo mais de quinze anos depois. Gosto dele. Compartilho aqui.

Carta abortada


Ah! A secura da página branca, o piano do Gismonti... Perturbas o meu dia, mesmo quando nos digladiamos verborragicamente, nos diluímos em retóricas, nos provocamos como víboras. A secura da palavra fria. Mas os olhos: os olhos não. Teus olhões de moleca inda brilham... Brilham e falam. Sei que sentes o mesmo que eu. Face ao impossível nítido, ao não-consertável, pulsam dois pares de olhos. Como negar o que disse de ti, de amor e de desprezo? Como amputar o passado, mesmo que dolorido e inútil? Saltar uma etapa da minha vida onde o sonho flutuava em fina e alva camada de saliva, a tua saliva, e que meus doces anos de bandeiras e guitarras traziam a tiracolo a tua gargalhada rica? Sinto incrustado nas paredes que circundam o vácuo do meu peito esse amor adolescente. Tristezas? Deixem-nas comigo. Lanço mão do futuro. Ah! O futuro! Está presente em alguma melodia do Grappelli, em algum discurso ingênuo sobre o pôr-do-sol, no cheiro de grama orvalhada, onde no vigor da minha adolescência compartilhei esse amor não sabido. Violas cantavam com mais ênfase, e eu não tinha tempo de me perguntar porquê. Mas a verve, embora ingênua, babava-se de nossas bocas e as canções subiam às copas das árvores. Não sente saudade? Aprende com humildade. Nos  vagões azuis do velho trem, sozinha, ouça as vozes distantes, o cheiro de chiclete; se dê a esse calabouço de lembranças.
Não te peço que me ames. Me amavas, eu sei, como não sabes que também te amava. E isso não morre. Não se apaga. Transforma-se numa imensidão de páginas. Que o frio de abril em nossa pequena cidade te ensine o caminho para findar tal couraça, que teus olhos insistem em trair. Te lembras do passado? Do frágil passado? Hoje, homem feito, com alma de moleque, com o duro peso de paixões mal curadas, alguns amigos repousando em confortáveis túmulos em cidadelas, um filho gerando em um ventre também amado, é mais cara a lembrança do teu sorriso de moleca.
Me odeie, se quiseres. Os teus olhos rebeldes olham pra onde manda a tua alma. Não disfarço mais esse amor. Não nessa página-ombro onde recosto as minhas cicatrizes. Que te dizer mais, minha pequena?! Tentei fugir, amputar sentimentos, criar canções e não desisti. Mas como negar as vezes em que desvio o meu caminho só pra te ver passar... Tua couraça é poderosa. És fria quando queres, e quase sempre é assim; Não vês agora o brilho de meus olhos, que precedem a deliciosa lágrima, quem sabe...
Não há muito o que dizer. Vezes em vezes a memória se encarrega de te trazer-me a uma visita. Há sempre uma Brahma gelada e alguns amigos de verdade; discos do Grappelli e um outro fim de semana. E que paire no ar esse gosto de festa junina. A página-vagina pare uma outra página, filha das canções que ouço. Experimente algumas canções novas. Um dia me entenderás. E aprenderás sorrir de corpo inteiro. Não vês mais nem menos que eu. Teus olhos não mentem. Mas te traem tanto...
O teu colant-bailarina infinda arabescos  nas páginas desertas. Furtivos encontros acendem fogueiras no gelo que inunda de preces o fim de outono. O cantar-caetano entende essa alva-aura-página-mãe. Te contei das folhas secas? Elas estão por lá. Como outrora distante. Ah! Cristal não polido! Abril finda. Mais um inverno povoa nosso deserto. Oásis de poesia. O cheiro do passado, elemento essencial para o cultivo do presente, presenteia a cidadela em festejos. Vês aquele sorriso no velho mendigo? Arrancado na marra daquele rosto surrado pelo tempo, pela miséria, pelas geadas de julho? Um fiapo escapa de seu hálito e inunda a bruma outonal. Não feches os olhos da alma. És de alvura e beleza, não de aço. Os teus olhos são o avesso desse oásis...
Vês como arranca páginas de dentro de mim? Quisera ouvisse a canção que ouço agora. Outrora me tocaria diferente. Fui rei, e tive a rainha mais deslumbrante de todos os reinos. Forjava a fogo e vodca barata epopéias ciganas pra te impressionar. Fui um gigante entre multidões sugando o teu sorriso, pequena. Mas o tempo... Ah! O tempo... Esse mesmo que afirmei milhares de vezes estar ao meu lado, te levou de mim. Ou não. Teus olhos... Sempre fui pego por olhos eloqüentes. E os teus... Já me renderam canções, poemas... Mas do que estou falando? Borde essa diminuta em teu violino, Grappelli. Na solidão desta pobre casa, posso estar ao teu lado. Afinal, o que é esta página? Arrancada como um parto? Não entendo os meus sentimentos, e não deveria falar deles. Mas falo. Depois, se for o caso, culpo o teu colant preto. Ou o violino do Grappelli. Quisera agora jogar uma pedra em tua janela e tocar “Misty” em meu velho violino. Ingenuamente, como outrora. Mas somos quase estranhos agora.
Face a imensidão deserta das palavras ditas a esmo, poderia como humanamente de hábito, me consolar, mas disto não necessito... Vomito páginas absurdas, arabescos infantis e prossigo. Aprendi a carregar a dor quase imperceptível das paixões malcuradas. Há alguns amigos no oeste que virão com poemas novos e o velho brilho nos olhos. Se eu gritasse, se eu tocasse, se eu escrevesse calhamaços de cartas, se eu vestisse uma roupa nova, se eu montasse uma banda de blues, se eu tomasse a caixa toda de valium, se eu fugisse nu pela noite gelada, se eu revisse Ana Maria, se eu bebesse uma cerveja, se eu fizesse um samba novo, se eu quebrasse o disco, tudo seria válido. Tudo restaria, moldura do teu rosto. Ainda de moleca. O teu sorriso é mais triste, sim. O tempo. Êta bicho valente! Mas é meu amigo. Pois não trouxe o inverno de volta? E não guardou esse brilho-cristal na caixinha de jóias dos teus olhos?
Cantarole baixinho. Mesmo que imensidões de montanhas e ironias nos distanciem de corpo e alma, sobram teus olhões de moleca. Cantarole baixinho. Então sorrirás de corpo inteiro.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Migalhas

Resgatando um poema escrito há muito tempo, mas tão atual na minha vida. Esse é daqueles em que você se reconhece, mesmo depois de tanto tempo. Foi publicado em uma coletânea do Prêmio Piracicabano de Literatura. Incrível como um poema próprio reverbera na sensação, muito mais do que na compreensão. Não o entendo, mas não é pra isso que serve o poema. Ou é?

                                           Migalhas



Das encruzilhadas inevitáveis
da vida na corda bamba,
vida que eu mesmo escolhi,
abraço a sutileza incômoda
dos restos a entupir o quarto,
fragmentos de beleza
largados a esmo,
como migalhas num pombal,
flores jogadas numa calçada pisada,
e abraço a memória
como se fosse um fio
tênue a amarrar a vida,
nego a eutanásia em silêncio
e sorrio feliz pela coragem
minha, de partir e chegar
em momentos que nunca escolhi.