segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

carta abortada

Nesse momento de mais uma transição profunda em minha vida, estou resgatando textos e poemas que escrevi há muito tempo, coisa de quinze anos ou mais, e que são conhecidos por muito pouca gente, sobretudo por quem os inspirou. Tem sido prazeroso me reconhecer neles, apesar dos arroubos exageradamente juvenis. Esse foi escrito como se fosse uma carta mesmo, mas que a pessoa que o inspirou veio conhecê-lo mais de quinze anos depois. Gosto dele. Compartilho aqui.

Carta abortada


Ah! A secura da página branca, o piano do Gismonti... Perturbas o meu dia, mesmo quando nos digladiamos verborragicamente, nos diluímos em retóricas, nos provocamos como víboras. A secura da palavra fria. Mas os olhos: os olhos não. Teus olhões de moleca inda brilham... Brilham e falam. Sei que sentes o mesmo que eu. Face ao impossível nítido, ao não-consertável, pulsam dois pares de olhos. Como negar o que disse de ti, de amor e de desprezo? Como amputar o passado, mesmo que dolorido e inútil? Saltar uma etapa da minha vida onde o sonho flutuava em fina e alva camada de saliva, a tua saliva, e que meus doces anos de bandeiras e guitarras traziam a tiracolo a tua gargalhada rica? Sinto incrustado nas paredes que circundam o vácuo do meu peito esse amor adolescente. Tristezas? Deixem-nas comigo. Lanço mão do futuro. Ah! O futuro! Está presente em alguma melodia do Grappelli, em algum discurso ingênuo sobre o pôr-do-sol, no cheiro de grama orvalhada, onde no vigor da minha adolescência compartilhei esse amor não sabido. Violas cantavam com mais ênfase, e eu não tinha tempo de me perguntar porquê. Mas a verve, embora ingênua, babava-se de nossas bocas e as canções subiam às copas das árvores. Não sente saudade? Aprende com humildade. Nos  vagões azuis do velho trem, sozinha, ouça as vozes distantes, o cheiro de chiclete; se dê a esse calabouço de lembranças.
Não te peço que me ames. Me amavas, eu sei, como não sabes que também te amava. E isso não morre. Não se apaga. Transforma-se numa imensidão de páginas. Que o frio de abril em nossa pequena cidade te ensine o caminho para findar tal couraça, que teus olhos insistem em trair. Te lembras do passado? Do frágil passado? Hoje, homem feito, com alma de moleque, com o duro peso de paixões mal curadas, alguns amigos repousando em confortáveis túmulos em cidadelas, um filho gerando em um ventre também amado, é mais cara a lembrança do teu sorriso de moleca.
Me odeie, se quiseres. Os teus olhos rebeldes olham pra onde manda a tua alma. Não disfarço mais esse amor. Não nessa página-ombro onde recosto as minhas cicatrizes. Que te dizer mais, minha pequena?! Tentei fugir, amputar sentimentos, criar canções e não desisti. Mas como negar as vezes em que desvio o meu caminho só pra te ver passar... Tua couraça é poderosa. És fria quando queres, e quase sempre é assim; Não vês agora o brilho de meus olhos, que precedem a deliciosa lágrima, quem sabe...
Não há muito o que dizer. Vezes em vezes a memória se encarrega de te trazer-me a uma visita. Há sempre uma Brahma gelada e alguns amigos de verdade; discos do Grappelli e um outro fim de semana. E que paire no ar esse gosto de festa junina. A página-vagina pare uma outra página, filha das canções que ouço. Experimente algumas canções novas. Um dia me entenderás. E aprenderás sorrir de corpo inteiro. Não vês mais nem menos que eu. Teus olhos não mentem. Mas te traem tanto...
O teu colant-bailarina infinda arabescos  nas páginas desertas. Furtivos encontros acendem fogueiras no gelo que inunda de preces o fim de outono. O cantar-caetano entende essa alva-aura-página-mãe. Te contei das folhas secas? Elas estão por lá. Como outrora distante. Ah! Cristal não polido! Abril finda. Mais um inverno povoa nosso deserto. Oásis de poesia. O cheiro do passado, elemento essencial para o cultivo do presente, presenteia a cidadela em festejos. Vês aquele sorriso no velho mendigo? Arrancado na marra daquele rosto surrado pelo tempo, pela miséria, pelas geadas de julho? Um fiapo escapa de seu hálito e inunda a bruma outonal. Não feches os olhos da alma. És de alvura e beleza, não de aço. Os teus olhos são o avesso desse oásis...
Vês como arranca páginas de dentro de mim? Quisera ouvisse a canção que ouço agora. Outrora me tocaria diferente. Fui rei, e tive a rainha mais deslumbrante de todos os reinos. Forjava a fogo e vodca barata epopéias ciganas pra te impressionar. Fui um gigante entre multidões sugando o teu sorriso, pequena. Mas o tempo... Ah! O tempo... Esse mesmo que afirmei milhares de vezes estar ao meu lado, te levou de mim. Ou não. Teus olhos... Sempre fui pego por olhos eloqüentes. E os teus... Já me renderam canções, poemas... Mas do que estou falando? Borde essa diminuta em teu violino, Grappelli. Na solidão desta pobre casa, posso estar ao teu lado. Afinal, o que é esta página? Arrancada como um parto? Não entendo os meus sentimentos, e não deveria falar deles. Mas falo. Depois, se for o caso, culpo o teu colant preto. Ou o violino do Grappelli. Quisera agora jogar uma pedra em tua janela e tocar “Misty” em meu velho violino. Ingenuamente, como outrora. Mas somos quase estranhos agora.
Face a imensidão deserta das palavras ditas a esmo, poderia como humanamente de hábito, me consolar, mas disto não necessito... Vomito páginas absurdas, arabescos infantis e prossigo. Aprendi a carregar a dor quase imperceptível das paixões malcuradas. Há alguns amigos no oeste que virão com poemas novos e o velho brilho nos olhos. Se eu gritasse, se eu tocasse, se eu escrevesse calhamaços de cartas, se eu vestisse uma roupa nova, se eu montasse uma banda de blues, se eu tomasse a caixa toda de valium, se eu fugisse nu pela noite gelada, se eu revisse Ana Maria, se eu bebesse uma cerveja, se eu fizesse um samba novo, se eu quebrasse o disco, tudo seria válido. Tudo restaria, moldura do teu rosto. Ainda de moleca. O teu sorriso é mais triste, sim. O tempo. Êta bicho valente! Mas é meu amigo. Pois não trouxe o inverno de volta? E não guardou esse brilho-cristal na caixinha de jóias dos teus olhos?
Cantarole baixinho. Mesmo que imensidões de montanhas e ironias nos distanciem de corpo e alma, sobram teus olhões de moleca. Cantarole baixinho. Então sorrirás de corpo inteiro.

6 comentários:

  1. Que linda declaração de amor!!!!
    Parabéns!
    Neneca

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  2. Belissimo texto. Extremamente poético. Fez me lembrar de Cecilia Meirelles, Clarice Lispector, um tonzinho de Nelson Rodrigues...por quê não? e é claro o forte do teu estilo unico.

    parabéns

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  3. lindo boi, nao conhecia esse lado fofinho seu, haha! a musa pegou de jeito, mandou bem! bjk

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  4. Parabéns, lindo!!!
    M.Paula

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